Uma pequena ilha de apenas 3.000 habitantes transformou-se no epicentro de uma complexa disputa territorial entre Peru e Colômbia. Santa Rosa de Loreto, situada na tríplice fronteira com o Brasil, revela um paradoxo geopolítico: embora seja administrativamente peruana, seus moradores dependem essencialmente dos serviços e recursos brasileiros e colombianos para sobreviver.
A escalada recente de tensões, marcada por sobrevoos militares não autorizados e trocas de notas diplomáticas ríspidas entre Colômbia e Peru, esconde uma preocupação estratégica maior – a Colômbia pode perder definitivamente seu acesso vital ao rio Amazonas.
Um complexo fenômeno ambiental, negligenciado pela Colômbia, está levando ao assoreamento do porto de Letícia, uma cidade de 45 mil habitantes. O alerta da situação já vem sendo dado há anos por cientistas da Universidade Nacional da Colômbia. “São fenômenos naturais e não há evidência que sejam causados por interferência humana ou mudanças climáticas”, disse o biólogo Santiago Duque, ao jornal espanhol El País.
A realidade em Santa Rosa: olhos no Brasil, coração no Peru
Santa Rosa de Loreto emergiu naturalmente entre as décadas de 1950 e 1970, resultado da sedimentação do rio Amazonas. Desde os anos 1960, a ilha foi povoada predominantemente por peruanos vindos de cidades próximas.
Patriotismo peruano x dependência transfronteiriça
A identidade nacional é visível: os habitantes cantam o hino peruano, consomem cerveja peruana do tipo pilsen e saboreiam ceviche. O Peru mantém presença administrativa com escritórios de agências tributárias, migração, polícia nacional e quartéis do exército.
Entretanto, a realidade cotidiana contradiz essa soberania formal. O único centro médico local não passa de um posto básico incapaz de lidar com emergências. Para uma cesariana, são necessárias quatro horas de navegação precária até Caballococha, no Peru. Na prática, os moradores cruzam o rio para buscar atendimento gratuito em Tabatinga, no Brasil, ou em Leticia, na Colômbia. A educação segue o mesmo padrão: o único colégio da ilha carece de infraestrutura adequada, levando famílias a matricular seus filhos em escolas colombianas.
Iván Yovera, ex-prefeito da localidade, exemplificou os problemas enfrentados pela localidade à rede peruana Panamericana TV: seus filhos estudam na cidade colombiana, assim como ele fez.
Saúde, educação, saneamento e alimentação expõem dependência
A precariedade dos serviços básicos é evidente em Santa Rosa de Loreto. Não há água potável contínua nem sistema de esgoto. A energia elétrica, intermitente, chegou há apenas cinco anos. A economia local reflete essa dependência transfronteiriça: o real brasileiro é a moeda predominante, seguida pelo sol peruano e, marginalmente, pelo peso colombiano. Produtos essenciais como arroz, açúcar e óleo chegam principalmente do Brasil, com preços inflacionados pelos custos de transporte.
A disputa pela soberania e a ameaça ao acesso colombiano ao Amazonas
A atual crise tem raízes na interpretação divergente de tratados centenários. O Tratado Salomón-Lozano de 1922 e o Protocolo do Rio de Janeiro de 1934 estabeleceram que a fronteira seguiria o canal mais profundo do rio. O problema fundamental: quando esses acordos foram assinados, Santa Rosa simplesmente não existia.
Em julho de 2024, o Congresso peruano acendeu o estopim ao aprovar unilateralmente uma lei elevando Santa Rosa à categoria de distrito dentro da província de Mariscal Ramón Castilla. Lima argumenta que a ilha é extensão de Chinería, atribuída ao Peru em 1929. A presidente Dina Boluarte declarou categoricamente que “não há nada pendente” com a Colômbia sobre o território.
Por que a Colômbia teme perder seu acesso estratégico ao rio?
A reação de Bogotá foi imediata. O presidente Gustavo Petro classificou a medida como “grave violação” da soberania territorial. Mas sua preocupação transcende a disputa cartográfica. Estudos da Universidade Nacional da Colômbia revelam dados alarmantes: a proporção do fluxo de água no lado colombiano caiu de 30% em 1993 para 19,5% atualmente. As projeções indicam que, sem intervenção até 2030, Leticia – único porto significativo da Colômbia no Amazonas – pode perder acesso direto ao rio durante a maior parte do ano.
O sobrevoo de uma aeronave militar colombiana sobre Santa Rosa em 7 de agosto, durante atividades cívicas peruanas, escalou as tensões. A Colômbia alegou que fazia parte da escolta presidencial de Gustavo Petro; o Peru exigiu garantias formais de não repetição. A Comissão Mista Permanente para Inspeção da Fronteira (Comperif), reativada para setembro, representa a última tentativa diplomática antes de uma possível escalada judicial internacional.
O jogo diplomático: interesses políticos e “cortina de fumaça”
Analistas sugerem que tanto Petro quanto Boluarte, enfrentando baixíssimos índices de aprovação doméstica, podem estar instrumentalizando a disputa. Petro enfrenta acusações de desviar atenção de problemas internos e protestos sociais. Boluarte, por sua vez, precisa demonstrar firmeza após a conturbada destituição de Pedro Castillo em 2022.
A solução técnica existe, mas esbarra em obstáculos políticos. A dragagem do estreito de Nazareth, proposta desde 2006, poderia restaurar o fluxo no lado colombiano. Contudo, o projeto exigiria cooperação bilateral – improvável no clima atual – além de recursos substanciais e questionamentos sobre sua eficácia de longo prazo num rio tão dinâmico quanto o Amazonas.
Fique conectado