O anúncio da cúpula entre Donald Trump e Vladimir Putin no dia 15 exemplifica a diplomacia imprevisível da maior economia mundial. O que deveria ser um ultimato a Putin — cessar as hostilidades na Ucrânia ou enfrentar sanções severas —, na sexta (8), transformou-se em uma convocação para reunião no Alasca, sem a participação do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky.
O evento, visto por muitos como um “triunfo diplomático” para Putin, mostra um padrão já familiar da diplomacia trumpista: uma retórica inicial firme, seguida por um “recuo suave” que concede ao Kremlin mais tempo e espaço. Essa mudança súbita de tom não é um incidente isolado, mas sim o mais recente capítulo na complexa e frequentemente contraditória postura de Donald Trump em relação à Rússia e à Ucrânia.
O padrão de Trump: dos elogios a Putin à culpa sobre a Ucrânia
Desde a invasão russa da Ucrânia em 2022, a posição de Trump tem sido marcada por uma série de guinadas e reviravoltas. Por um longo período, evitou criticar diretamente o presidente russo Vladimir Putin, chegando a elogiar suas ações como “geniais” e “astutas”. Essa postura, que muitas vezes ecoava as narrativas do Kremlin sobre o início do conflito, causava preocupação entre aliados ocidentais.
Em diversos comícios de campanha, no ano passado, Trump prometeu publicamente que acabaria com a guerra na Ucrânia em apenas 24 horas caso retornasse à Casa Branca, sem, contudo, oferecer detalhes sobre como o faria. Em março de 2025, chegou a dizer que foi “um pouco sarcástico” ao fazer essa promessa, apesar de tê-la repetido várias vezes.
Ainda mais alarmante para Kiev foi a tendência de Trump de culpar a própria Ucrânia pelo início da guerra. Em fevereiro de 2025, durante um encontro tenso no Salão Oval com o presidente Zelensky, Trump irritou os ucranianos ao afirmar falsamente que Zelensky era o responsável pela invasão russa, descrevendo-o ainda como um “ditador sem eleições”.
A declaração, que ignorava as dificuldades práticas para a realização de eleições na Ucrânia devastada pela guerra e com grande parte da população deslocada, replicava abertamente a retórica do Kremlin. Naquela ocasião, Trump chegou a dizer: “Hoje ouvi: ‘Oh, não fomos convidados.’ Bem, vocês estão lá há três anos. Vocês deveriam ter terminado. Vocês nunca deveriam ter começado. Vocês poderiam ter feito um acordo”.
A relação entre Trump e Zelensky já era “gélida”. O encontro de fevereiro de 2025 na Casa Branca, descrito como uma “discussão acalorada”, viu Trump e o vice-presidente JD Vance criticarem duramente o líder ucraniano. “Você não está numa posição muito boa agora”, disse Trump a Zelensky. “Você permitiu que estivesse numa posição muito ruim. Você não tem as cartas agora. Conosco, você começa a ter cartas”. Esse episódio foi visto como desastroso por Kiev, que, a partir de então, buscou ardentemente recuperar sua relação com Trump.
A surpreendente virada: o endurecimento de Trump contra a Rússia
Nos meses mais recentes, a postura de Trump começou a mostrar sinais de endurecimento. Passou a expressar frustração com os ataques de Moscou à Ucrânia e, surpreendentemente, começou a ameaçar com sanções, gerando alguma apreensão entre a elite russa de que Putin pudesse ter “exagerado”.
Em 30 de março, Trump declarou-se “irritado” com Putin por questionar a legitimidade de Zelensky e consideraria mais tarifas sobre o petróleo russo “se ele e o presidente russo não conseguirem encerrar o derramamento de sangue na Ucrânia” e “se eu achar que foi culpa da Rússia”. Apesar de ter criticado Zelensky também, acusando-o de tentar desistir de um acordo de defesa de armas com os EUA, Trump adicionou que, embora “desapontado” com Putin, ainda confiava nele.
A mudança de tom se aprofundou. Em 24 de abril, Trump criticou Putin novamente após mais ataques russos, escrevendo em sua plataforma Truth Social: “Não estou feliz com os ataques russos a Kiev. Não são necessários e são de péssimo momento. Vladimir, PARE!”.
Dois dias depois, num encontro privado com Zelensky no Vaticano, o primeiro face a face desde a visita à Casa Branca, Trump intensificou suas críticas a Putin em suas redes sociais, sugerindo que os ataques o faziam “pensar que talvez ele não queira parar a guerra, ele está apenas me enrolando, e precisa ser tratado de forma diferente, através de ‘Bancos’ ou ‘Sanções Secundárias’?”. Ele concluiu: “Muitas pessoas estão morrendo!!!”.
Ameaças de sanções e o apoio com armas à Ucrânia
Em julho, o apoio de Trump à Ucrânia atingiu seu ponto mais forte. Dias depois de a Casa Branca anunciar a suspensão de algumas entregas de armas essenciais pelo Pentágono, Trump intensificou as críticas a Putin e prometeu enviar mais armas para a Ucrânia. “Não estou feliz com Putin, posso dizer isso agora, porque ele está matando muitas pessoas”, afirmou. Em 13 de julho, deu um passo ainda mais significativo, prometendo ajudar a Ucrânia a obter armas avançadas, incluindo mísseis Patriot, a serem pagos pela União Europeia.
A cúpula no Alasca: a proposta de “troca de territórios” e a vitória de Putin
Apesar do endurecimento recente, a trajetória de Trump deu mais uma guinada dramática na sexta, com o anúncio da cúpula com Putin no Alasca. O encontro se deu após uma visita inesperada de Steve Witkoff, representante especial de Trump, a Moscou em 6 de agosto, onde se reuniu com Putin por três horas.
A diplomacia de Witkoff parece ter “mudado a natureza da oferta” de paz, aponta a The Economist. Ele teria acenado com a “cenoura” da reintegração da Rússia à economia mundial, incluindo o cancelamento de sanções e o fim das restrições ao comércio de hidrocarbonetos. Nesse ponto, Putin teria feito sua própria oferta: cessar a luta se a Ucrânia recuasse voluntariamente para as fronteiras administrativas das províncias de Donetsk e Luhansk.
A sugestão de Trump de que a Ucrânia “poderia ceder algum território à Rússia pela paz” — descrevendo-o como “alguma troca de territórios para o benefício de ambos” — causou imediata “confusão” e alarme. Como a Ucrânia não ocupa terras russas, qualquer “troca” implicaria em ceder território ucraniano atualmente controlado por Kiev em troca de terras ocupadas pela Rússia.
A trajetória de Trump em relação à Ucrânia e à Rússia revela um padrão de “retórica dura, seguida por um recuo suave”. Essa inconsistência não é apenas uma característica de seu estilo pessoal, mas também um reflexo de dinâmicas internas em sua própria administração. Fontes ouvidas pela The Economist descrevem o processo como um “show de horrores”, com “vários textos emergentes e sobrepostos”, descritos como “trabalhos paralelos em andamento”, gerando grande “confusão”.
Reações internacionais: Kiev rejeita e Europa teme ser marginalizada
A resposta de Kiev à sugestão de Trump foi imediata e inequívoca. O presidente Zelensky “rejeitou categoricamente” qualquer proposta de ceder território à Rússia. Horas após as declarações de Trump, Zelensky afirmou em um pronunciamento em vídeo: “A resposta à questão territorial ucraniana já está na Constituição da Ucrânia. Ninguém recuará disso e ninguém poderá. Os ucranianos não darão sua terra ao ocupante”.
Líderes europeus e ucranianos expressaram grande preocupação em serem “marginalizados” na cúpula Trump-Putin. Temem que os dois líderes “fechem um acordo por conta própria” e tentem “impô-lo a Kiev”. Em resposta, potências europeias e a Ucrânia organizaram um encontro em Londres com altos funcionários americanos para apresentar uma “contraproposta”.
A reunião, liderada pelo Secretário de Relações Exteriores britânico, David Lammy, e pelo vice-presidente norte americano, JD Vance, contou com a participação de Witkoff virtualmente. Os europeus e ucranianos foram firmes em suas exigências:
- um cessar-fogo deve preceder quaisquer discussões sobre mudanças territoriais;
- a Ucrânia não entregará território que a Rússia não ocupa; e
- qualquer acordo deve ser acompanhado por “garantias de segurança inabaláveis”, incluindo uma potencial adesão da Ucrânia à OTAN.
Eles insistiram que “o futuro da Ucrânia não pode ser decidido sem os ucranianos” e que os europeus também devem fazer parte da solução, pois “diz respeito à sua segurança
Para a Europa, a Rússia é vista como uma “grande ameaça estratégica”. Os líderes europeus temem que “muitas concessões à Rússia” apenas “alimentarão seu apetite por mais”, especialmente nos países bálticos. A cúpula entre Trump e Putin, para eles, é uma “exibição simbólica” que valoriza Putin no cenário mundial, mas sem que ele precise fazer “concessões significativas”.
Um futuro incerto para a Ucrânia e a segurança europeia
A cúpula no Alasca, independentemente das reais intenções de paz, representa uma clara “vitória diplomática” para Vladimir Putin, destacaram especialistas à The Economist. O encontro será o primeiro entre América e Rússia em quatro anos e a aparição mais ostensiva do ditador russo desde a invasão da Ucrânia, em 2022.
A confusão em torno das propostas, os egos em conflito na administração Trump e a firme recusa de Kiev em ceder território pintam um quadro de grande incerteza. Enquanto os europeus e ucranianos buscam desesperadamente um lugar à mesa e garantias de segurança robustas, a Rússia capitaliza a visibilidade diplomática que o encontro com Trump oferece.
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